O cachorro parece um labrador e olha para mim quando me aproximo.
Tem uma cara afável. Somos ocidentais nós dois, amigo. Se bem que você talvez tenha nascido aqui, não é? Nasceu? No canil de um criador? Claro, onde mais, você me responde, com a paciência dos labradores.
Eu não nasci aqui. Não sei se você está muito interessado em saber. Sou do outro lado do planeta. Pode-se dizer que vim escondido dentro da bagagem de outra pessoa. É como se eu tivesse entrado clandestina, apesar do visto no meu passaporte. De fininho, para que não me vissem, para que não vissem as coisas invisíveis que eu trazia na mala. Que ninguém me veja ainda, que ninguém suspeite. Nesse sentido sou bem mais ocidental do que você, amigo de capa amarela. Não pertenço a este lugar.
E por que exatamente estou aqui, então, você poderia me perguntar se tivéssemos mais tempo para trocar olhares, se a sua coleira e o seu dono já não fossem te puxando para as suas obrigações - sejam elas quais forem, acompanhar, guiar, divertir.
Não sei muito bem, para ser honesta. Estive reaprendendo a andar. Estou reaprendendo a andar. Depois da tempestade, da era glacial, da grande seca, a gente pode usar a imagem que quiser, ninguém vai se importar muito, afinal, quem somos nós se não menos do que anônimos aqui. Abriu-se esta porta. Agora não dá tempo de te contar como aconteceu. E ainda não sei se andar equivale a lembrar, se equivale a esquecer, e qual das duas coisas é o meu remédio, se nenhuma delas, se nenhuma opção existe e se andar é o mal e o remédio, o veneno que tece a morte e a droga que traz a cura. Se vim para lembrar - se vim para esquecer. Se vim para morrer ou para me vacinar. Talvez eu descubra. Talvez nunca seja possível descobrir, desvelar, levantar o toldo, remover qualquer traço de ilusão de caminhar.
Seja como for. É só colocar um pé depois do outro.
Adriana Lisboa, em Rakushisha
Tá na minha lista de coisas a ler
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