domingo, 1 de agosto de 2010

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Estrondo! Na primeira curva ouviu-se o desacordar dum piscar de olhos que durou tempo demais. Ele no chão, vestindo uma camisa branca com marcas que já acusavam certas aventuras da mesma noite; as pálpebras pesadas: lugar comum aos que prolongaram até essa hora da madrugada sua boemia de sexta. Seu companheiro o puxou de volta para o assento, e os poucos passageiros presentes notaram a cena fingindo normalidade. Logo passa, imaginaram. Para compensar o tamanho avantajado que roubava da camisa branca parte do seu lugar no banco, o companheiro cruzou seus braços com os do amigo caído, segurando firme para não acontecer de novo.
Daí prédio, sinal, pálpebra, quebra-mola, olho no celular, prédio, mola, árvore, pálpebra, chão: Estrondo! Como num ciclo de imagens e reações, a camisa branca, marota, querendo brincar, voltou ao chão do ônibus, mas dessa vez pra valer. Já foi de bruços e conquistando seu espaço na poça. O celular, que pendia numa das mãos, imitou o gesto do dono e também ficou jogado, imundo, boêmio, sonhador num chão que de sonhos nada conservava. Uns figurantes vieram levantá-lo e até tentaram sentá-lo num outro banco. O negócio é que algo acima dele, quem sabe a bebida desleal que lhe bateu de mal jeito nos devaneios, e a qual não negara sequer uma gota da cota de embriaguez oferecida. Quiçá o palhaço bêbado carregando-o no colo, brincando de ventríloquo. Ou a ex-camisa-branca, agora preta. Algo acima dele o quis de volta ao banco estreito e trapaceiro, junto de seu companheiro. Ele obedeceu: levantou e voltou como um monge, causando preocupação e apreensão aos outros passageiros. Atirou-se de volta ao seu lugar apoiado em seu companheiro tal e qual criança faz com ursinho de pelúcia na hora de dormir. Havia virado criança mesmo. É pena que a idade chega, o terminal também. Os passageiros se vão e ele logo volta a ser adulto. A camisa preta cobra sua candura de volta, e se algum segundo da viagem, que nem chegou a ser longa for lembrado, agora ele deverá estar procurando por sua moral num pote de iogurte. Ou não.

Matheus Marins - 31/07/2010

2 comentários:

  1. Agradecendo a visita ao folhas...será sempre bem vindo...eu aqui vou ficando...bjks doce no ♥.

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  2. adorei, tem muita criatividade
    adorei as comparações
    estimula a imaginação
    bela semana
    beeijo

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