Acordou preguiçosa, rolou na cama como se tentasse apagar o sono e levantou séria, despenteada. Debaixo do chuveiro, espantou um diário zumbi do corpo. Ligou a cafeteira e ia separar a roupa do serviço quando se deparou com o calendário. 25 de agosto. Tem dia que dói ao ser olhado. Este era vermelho, diferente dos outros, pretos e quase todos riscados – fim de mês. Era diferente, este dia. Fazia exato um ano que seu pai morrera, num lugar bem distante dali.
Inevitável
lembrar da infância, dos olhos verdes, dos cabelos antes louros e
ultimamente brancos, do jeito, momentos, gostos e cheiros repetentes
e repentinos, tanta coisa. Lembrou também de tudo o que acontecera
desde então e até a fizera se mudar para seguir adiante. Ainda
novíssimo, o lugar. Aí lembrou do relógio que, sobre o calendário,
não parava. Lembrou que esqueceu do café. Estava atrasada. Mais um
atraso seria intragável como o gosto do café perdido. Mas nenhum
amargo lhe parecia tão forte quanto o amargo da falta. Correu.
Na
rua o movimento era diferente, notou logo que saiu de casa. Todos
pareciam mais alegres, descompromissados. Achou que fosse pelo
contraste visual, posto que ela estava especialmente triste e cheia
de afazeres. Andou dois quarteirões para esperar pelo ônibus que
deixava no centro da cidade e a estátua do primeiro presidente hoje
não estava pichada. Logo depois de cruzar a roleta, lembrou que
esquecera o crachá – outra vez. Simpatizou com o velho cobrador,
em vias de se aposentar, que também não estava lá muito feliz.
Sentou perto dele para se sentir mais em casa na sua melancolia.
Pensou que talvez houvesse caído ao homem a ficha por ter trabalhado
a vida inteira sob o mesmo itinerário.
Meia
hora depois, teve de saltar antes do ponto ideal porque a principal
avenida da cidade estava fechada. Provavelmente algum acidente sério.
Evitou tomar a avenida mesmo a pé. Contornou-a a passos apressados e
chegou ao edifício comercial cheirando a suor e ausência, quarenta
minutos atrasada – tempo que gastara revirando a estante da
memória. Engoliu o choro com uma dessas balas que vendem nos ônibus
e, quando ia entrando no edifício, tomou uma porrada não sabe de
onde. Hoje não, pensou. Com o coração aos pulos, ela segurou suas
coisas com força e deu alguns passos para trás, indefesa.
Passaram-se segundos e nada aconteceu, foi quando teve coragem de
olhar a sua volta e viu ninguém. Nem do outro lado da rua. Tudo
deserto. Apenas um som ritmado vindo da avenida, não sabia o motivo
da algazarra. Agora atenta, retomado o fôlego, ia ingressar no seu
local de trabalho já reassumindo a tristeza da falta. Foi quando viu
seu reflexo se aproximar enquanto chegava perto da porta de vidro que
bloqueava a entrada para o prédio. Havia dado com a cara na porta,
compreendeu – que tola. Ainda bem que ninguém viu, pensou. Ao lado
da porta, um papel colado informando “Em comemoração à
independência, dia 25 de agosto não funcionaremos.”
Podia
entender um pouco agora. Etnocentrista, achou que a causa da
vermelhidão nas letras do calendário, que ganhara numa farmácia,
era o primeiro aniversário da morte de seu pai. Saiu da rua deserta
e caminhou até a avenida para ver o que se passava. O dia, motivo de
orgulho na memória daquele pequeno país, era de festejar. Alguns
usavam a data como pretexto para a farra, outros afirmavam discursos
de integração nacional. Todos num só sentimento e ela voltou a se
sentir estrangeira. Sem conseguir se integrar nem querer estragar a
festa de ninguém, voltou para pegar o ônibus e mais um cobrador -
este ainda jovem - era triste, dependente. Em função das voltas que
precisou dar e dos carros parados de qualquer maneira na rua, o
ônibus demorou muito além do habitual e ela conseguiu chegar em
casa quando o sol já queria começar a se pôr.
Adentrou
seu lar e sentiu o velho odor da ausência. Aroma de pai. Ela com o
cheiro da festa da rua. Precisou de outro banho e deve ter se molhado
mais com as lágrimas que com água corrente. Ligou no telejornal e
reafirmou o que descobrira: dia da independência, integração
nacional, alegria. Para ela, dia de saudade, de nó na garganta,
dependente de uma memória que não poderia deixar para trás. Comeu
algo a duras penas e, quando a tarde anoiteceu, manteve apagadas
todas as luzes.
Foi até a mesinha ao lado da sua cama e acendeu uma vela que iluminou de prima a fotografia meio batida de um senhor de olhos claros e cabelo branco, quase amarelo. A luz difusa da vela deixava apenas vestígios do azul latejante de sua colorida blusa. Suspirou ao congelado riso dele. Enquanto os fogos queimavam lá fora, ela, órfã e castrada do coletivo, só queria dormir em paz, sem pais. Amanhã, com o país esquecendo o motivo da festa, que existirá apenas em vestígios nos jornais, nas caras amassadas de ressaca, na memória, ela voltará a pertencê-los.
Foi até a mesinha ao lado da sua cama e acendeu uma vela que iluminou de prima a fotografia meio batida de um senhor de olhos claros e cabelo branco, quase amarelo. A luz difusa da vela deixava apenas vestígios do azul latejante de sua colorida blusa. Suspirou ao congelado riso dele. Enquanto os fogos queimavam lá fora, ela, órfã e castrada do coletivo, só queria dormir em paz, sem pais. Amanhã, com o país esquecendo o motivo da festa, que existirá apenas em vestígios nos jornais, nas caras amassadas de ressaca, na memória, ela voltará a pertencê-los.
Matheus
Marins Alvares
Amei ter lido esse texto hoje. Ele disse tantas coisas que eu queria ouvir - e sentir. Como você disse "Tem dia que dói ao ser olhado". Parabéns, Matheus. Um texto digno de um ótimo escritor.
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