Escrever me permite recordar, reavivar, pegar o passado descolorido pelas camadas de tempo e retocar na memória a lembrança do que partiu, mas que ficou aqui guardado a tantas chaves quanto a porta de um coração pode conter. Por isso, durante uma madrugada tão profusa, cheia de si, me sento à escrivaninha e acendo o velho lampião que sempre com sua luz acompanhou a graça que vinha de você nas noites banhadas a músicas, histórias, risos e nossos corpos a desenhar em nuances na parede os moldes de um amor sincero.
Escrevo-lhe desconfiado que não vá ler se eu deixar esta carta com flores em cima de uma caixa de mármore. Mas o dia do seu aniversário chegou e resolvi me mudar, em pensamento, para a data da última vez que sopramos juntos a sua velinha, que só contava “27”: um tempo que jamais vou esquecer.
Nos meus olhos posso ver: Carne seca desfiada com aipim, salada, bolo de chocolate. Preparei tudo para você que vinha do trabalho exausta. Vou deixar escondido e fazer que estou dormindo. Você sentará no sofá, retirará o salto, esticará os pés castigados pela correria no serviço, se acomodará e ligará a tevê sem prestar muita atenção no que faz. 5 minutos depois você desliga o aparelho, possessa por não haver na telinha coisa que preste. Daí permanece outros 5 minutos na frente da geladeira e, ainda agitada, termina a jarra de mate que preparei na semana passada. Vai tomar um banho, escovar os dentes e cair do meu lado. Eu nem me movo e sequer respiro. Você não fala comigo e dorme triste, sabendo que a idade vai bater de novo. Quando percebo que silenciou, levanto da cama e arrumo tudo. Retiro a carne seca do forno, pego o bolo e a salada no vizinho, arrumo mesa, pratos, vinho e o mais importante: a vela. Ligo todos os despertadores para meia noite, coloco um chapéu engraçado e espero o dia seguinte. Quando começa a barulheira que te acorda, você salta da cama e estou na cozinha, onde te espero com os reloginhos atacados. Entra descabelada e com cara de ódio, expressão que muda numa fração de segundo, no que fica surpresa com tudo. Diz que não sabe o que dizer, está feliz. Estamos.
A noite segue como esperado: comida, bebida, risos, música, beijos, histórias, vizinhos reclamando. Acendo a vela e cantamos uma marchinha de comemoração. Você pede para apagá-la junto. Faço um pedido: que essa noite se repita todos os anos.
Dormimos juntos no sofá e, no dia seguinte, você me coloca a culpa por ter servido tanto vinho, que trabalhou de ressaca e nem conseguiu segurar um chope com a turma para comemorar. Acho graça.
Volto para o dia de hoje, 1 ano depois do seu dia. Vou preparar os mesmos pratos e tentar repetir a noite, ver se meu desejo se realiza: Carne seca desfiada com aipim, salada, bolo de chocolate. Mas no recheio só tem saudade. A garganta deu nó e a carne seca não desce. Errei na pimenta e faltou você reclamando estar a ponto de cuspir fogo. Tudo desandando e vou me deitar. A luz do velho lampião pela primeira vez vacila em sair, trabalhando em saudade.
“Parabéns pra você
Nessa data querida
Muitas felicidades
Muitos anos de vida.
Pois cheia de vida continuará sempre na minha lembrança.
Tudo o que eu queria era sua presença, mas o seguimento da história se provou mais poderoso do que qualquer pretensioso querer.
Receba os beijos de quem tanto te ama.”
Parabéns, Cecília dos anjos!
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Encontro Marcado
Está na hora, já posso senti-lo chegar.
Mal o ponteiro das horas encontra o número sete e eu arrumo minhas coisas de volta para casa. Despeço-me do faxineiro e do ator coadjuvante que ainda estão no set de filmagem e parto para tomar o ônibus que cruza lentamente e sem paciência a cidade. Sinto a tensão no rosto de cada operário, é o fim de mais um dia na cidade grande. Vão tornar à casa, rever seu par, seus filhos, ou apenas tomar um banho e jantar sozinhos no conjugado que tem o aluguel quase sempre atrasado, rotina essa que cumpro com fidelidade. Depois do jantar, ligo o computador e me sinto só. Abro o programa de chat e, pontual, revejo meus amigos virtuais como se nosso encontro já estivesse marcado desde a noite anterior. A mulher que apanha do marido quando este chega bêbado no apartamento, o jogador de RPG , a menina que tira a roupa na frente da webcam sem a menor censura e a moça que tecla comigo há umas duas semana mas que já é até íntima. Todos estão ali, prontos para trocar ideias como qualquer sujeito o faria no bar após o trabalho. É a moça que conheço há duas semanas quem vem falar comigo ligeira, logo que me vê logado. Diz que me conhece há pouco tempo, mas se sente bem de conversar. Confidencia que anda traindo o noivo com um eletricista que vai à sua casa há duas semanas para consertar a fiação do chuveiro sem conseguir. Conto do meu dia no serviço, filmando um novo curta que deve estrear pelo fim do ano. Digo ainda que andam preocupados com o ator principal, que cheira uma carreira após a outra sem se preocupar com a sua carreira verdadeira. Ela ri da piada de humor negro enquanto enxoto os mosquitos que atazanam o verão paulista, e ao mesmo tempo em que o vizinho ao lado deve estar acendendo um cigarro enquanto xinga o juiz no canal do futebol, impropérios que a parede me conta todas as vezes.
Minha companheira de chat se chama Manuela e não mora muito longe daqui. Ainda não conta com cabelos brancos nem rugas. Trabalha como recepcionista numa loja de perfumes e sonha conhecer o mundo. Diz que se identifica muito comigo e que quer me conhecer pessoalmente. Deve estar cansada do eletricista.
Horas depois, bebo um copo de leite e vou deitar. Não consigo dormir, o sono já foi embora, quiçá nem chegou. A imagem da mulher do chat não sai da minha cabeça e, quando me dou conta, voltei para o computador mas ela já não está. Converso com o garoto do RPG, que está feliz por ter evoluído no jogo – e ganhou uns quilos a mais quase sem perceber. Quando estou conformado para voltar à cama, Manuela reaparece no chat. Trato de não perder tempo e digo a ela tudo que me vem à telha. Marcamos de nos encontrar um dia depois, num restaurante no bairro dela. Não pensei que fosse ser tão fácil, durmo tranquilo.
No dia seguinte, peço para sair mais cedo no trabalho, digo que tenho compromisso sério e prometo compensar a hora chegando mais cedo para a edição quando acabarem as filmagens. Tomo banho no camarim, coloco minha roupa mais bonita e um sapato de couro semi-novo que o antigo inquilino esqueceu quando deixou o conjugado. As intenções de Manuela me pareceram claras na nossa última conversa e a noite promete ser proveitosa. Passo o perfume que peguei emprestado com o ator principal. Não podia chegar lá cheirando a colônia Sendas. Tomo um taxi para escapar do suor incrustado na pele e nas roupas dos velhos trabalhadores da lotação. Chego adiantado onde marcamos e resolvo esperar do lado de fora, um restaurante chamado Canto do Boi. Vejo que muitas pessoas moram nas redondezas. Suas casas se revezam com comércios, geralmente bares. Não conhecia aquele lugar, Rua José Pereira. Me senti incompatível, posto que não era um canto bem iluminado e os transeuntes tampouco andavam de forma muito apresentável. Já estava ansioso pelo encontro e, Manuela, atrasada há dez minutos. Achei que não fosse aparecer, ponderei por ir de volta para casa e para minha rotina. Foi quando meus olhos esbarraram em seu rosto, mais bonito que nas fotos, espiando o relógio no pulso e a se aproximar indecisa se era eu ou não. Sorri confirmando minha identidade, no que fui retribuído vendo a cova no sorriso a qual tanto reparei em fotografias. Ela era morena, cabelo curto, um metro e setenta mais ou menos. Chegando perto, me deu um abraço sincero e caloroso, propôs que pegássemos logo uma mesa. Me senti satisfeito.
Ela Quis se sentar nos fundos, num canto reservado. Aceitei. Passava sua mão na minha e dizia estar contente. Conversamos sobre nada e de repente sua língua estava dentro de minha boca, nossos pratos sequer haviam chegado. Entrei no clima, e estávamos bebendo um vinho barato, que era o único que era servido. A comida chegou, estava à altura da quentinha dos peões carregadores lá do serviço, e o papo já fluía de forma que eu podia me abrir sem remorso. Contei mais dos meus pais bem sucedidos e da carreira que resolvi tomar, de minha irmã mais velha que se casou e de como eu gostava de trabalhar no estúdio.
Sem terminar o frango, ela levanta e diz que vai no banheiro, no que me dou conta novamente do mundo ao nosso redor. O restaurante está vazio e o cara do outro lado do balcão me espia de esguelha enquanto lava a louça com cara de quem cheirou e não gostou. O lugar já está fechado e concluo que somos os últimos clientes. Começo a pensar que poderei propor algo mais a ela após pagar a conta. Manuela se demora longos 5 minutos e, mal a vejo de volta, recebo uma porrada na cabeça. Caio no chão de bruços e não custo a sentir sangue escorrendo com pressa atrás da minha orelha. Lá de baixo posso ver. São três homens armados junto dela. Vestindo chinelos, bermudas em farrapos e camisetas furadas. Uma toda preta, outra com um escudo de time do lado esquerdo do peito, e uma terceira com a cara de um deputado estampada. Tento alcançar a porta e já começo a enxergar embaçado quando vejo a cabeça do deputado me carregando para dentro de um carro. Manuela não havia marcado encontro apenas comigo, mas também com outros três rapazes, e na mesma hora e lugar.
Quando recupero a lucidez, me vejo numa casa habitada apenas por mim e outros dois homens que não sei dizer se são os mesmos do dia anterior, posto que trajam outras vestimentas. Tento me espreguiçar, mas minhas mãos estão amarradas aos meus pés de forma grotesca, não sobrando nenhum espaço entre esses membros. A posição que sou forçado a fazer me projeta para frente, me colocando de cara com o chão, sem poder sair dali, como uma tartaruga de ponta cabeça. Tenho a boca lacrada também, então apenas posso ouvir. Estão tentando localizar meus pais, imagino que por ter dito à Manuela que tinham dinheiro. Se não conseguirem, disseram que a minha irmã vai servir. Vejo o sol nascer duas vezes na mesma posição, sem água e nem comida. Um homem magro com cicatriz no rosto aparece, me senta numa cadeira e me interroga enquanto um outro está armado, pronto para alojar uma bala dentro dos meus pensamentos. O magro se desespera por não conseguir o contato com nenhum conhecido meu. Tortura-me sem pudor e estou dopado demais para conseguir informar onde trabalho exatamente, coisa que não cheguei a dizer à Manuela, não sei pelo quê.
Ouço que não longe dali outros sequestros acontecem pela voz de criminosos confabulando entre si e fazendo perguntas aos seus reféns, sempre ameaçadoramente e falando ao celular quase que o tempo inteiro. O homem da cicatriz comenta com o outro que está tudo decidido, solta minhas mãos dos meus pés e me guia até um carro. Já não tenho forças para tentar uma fuga aos pulos e me sinto muito cansado. Minhas pálpebras sozinhas pesam mais que meu corpo inteiro, mas chego a ver as outras habitações e muito mato em nosso entorno. No banco de trás, acompanhado de um homem branco e gordo que porta uma pistola, sou levado até um lugar cheio de árvores que fica poucos minutos longe da casa. Não tomam o cuidado de me vendarem os olhos e, no caminho, descubro uma placa que diz “Mirante José Amorim - 5 km”
No que o carro para, sou forçado a deixar o veículo com mãos me guiando pelo pescoço. Paramos poucos metros adiante do carro e, de súbito, sinto como se o magrelo da cicatriz me abraçasse, e logo em seguida recebo uma faca em meu abdômen, que se retira furiosa. “Não serviu pra nada. Pé rapado! Manuela precisa prestar mais atenção com seus pares.” Sinto o chão batendo na minha cabeça e o barulho de motor logo fica distante. Os homens foram embora e, mesmo que minha boca não estivesse lacrada, não conseguiria dizer uma palavra. Sinto algo pulando dentro do meu peito, em frequência perfeita. Vejo muito sangue descer de minhas entranhas, e a batida que vem de mim vai ficando sem vontade de ser. Estou mais cansado, vejo alguém se aproximar. É Manuela, mas não sei se ela está ali, seu olhar parece dizer que lamenta que o encontro que marcamos tenha acabado dessa maneira, finalmente meu peito passa a tocar batida nenhuma e aceito estar morrendo quando um filme finalmente começa a passar toda a minha vida diante de dois olhos indecisos.
Trate de contar sobre Manuela e venha, por favor, buscar esse corpo já sem ânimo e vida nenhuma...
Volto e parece que estive sempre sonhando. O papel à minha frente conta a história de um homem que foi seqüestrado e morreu por um encontro às cegas, seu espírito quis contato comigo e deixou um recado em psicografia direta. Apesar de ter acabado de acordar, me sinto esgotado pelo último encontro e preciso voltar a dormir.
Matheus Marins Alvares
Mal o ponteiro das horas encontra o número sete e eu arrumo minhas coisas de volta para casa. Despeço-me do faxineiro e do ator coadjuvante que ainda estão no set de filmagem e parto para tomar o ônibus que cruza lentamente e sem paciência a cidade. Sinto a tensão no rosto de cada operário, é o fim de mais um dia na cidade grande. Vão tornar à casa, rever seu par, seus filhos, ou apenas tomar um banho e jantar sozinhos no conjugado que tem o aluguel quase sempre atrasado, rotina essa que cumpro com fidelidade. Depois do jantar, ligo o computador e me sinto só. Abro o programa de chat e, pontual, revejo meus amigos virtuais como se nosso encontro já estivesse marcado desde a noite anterior. A mulher que apanha do marido quando este chega bêbado no apartamento, o jogador de RPG , a menina que tira a roupa na frente da webcam sem a menor censura e a moça que tecla comigo há umas duas semana mas que já é até íntima. Todos estão ali, prontos para trocar ideias como qualquer sujeito o faria no bar após o trabalho. É a moça que conheço há duas semanas quem vem falar comigo ligeira, logo que me vê logado. Diz que me conhece há pouco tempo, mas se sente bem de conversar. Confidencia que anda traindo o noivo com um eletricista que vai à sua casa há duas semanas para consertar a fiação do chuveiro sem conseguir. Conto do meu dia no serviço, filmando um novo curta que deve estrear pelo fim do ano. Digo ainda que andam preocupados com o ator principal, que cheira uma carreira após a outra sem se preocupar com a sua carreira verdadeira. Ela ri da piada de humor negro enquanto enxoto os mosquitos que atazanam o verão paulista, e ao mesmo tempo em que o vizinho ao lado deve estar acendendo um cigarro enquanto xinga o juiz no canal do futebol, impropérios que a parede me conta todas as vezes.
Minha companheira de chat se chama Manuela e não mora muito longe daqui. Ainda não conta com cabelos brancos nem rugas. Trabalha como recepcionista numa loja de perfumes e sonha conhecer o mundo. Diz que se identifica muito comigo e que quer me conhecer pessoalmente. Deve estar cansada do eletricista.
Horas depois, bebo um copo de leite e vou deitar. Não consigo dormir, o sono já foi embora, quiçá nem chegou. A imagem da mulher do chat não sai da minha cabeça e, quando me dou conta, voltei para o computador mas ela já não está. Converso com o garoto do RPG, que está feliz por ter evoluído no jogo – e ganhou uns quilos a mais quase sem perceber. Quando estou conformado para voltar à cama, Manuela reaparece no chat. Trato de não perder tempo e digo a ela tudo que me vem à telha. Marcamos de nos encontrar um dia depois, num restaurante no bairro dela. Não pensei que fosse ser tão fácil, durmo tranquilo.
No dia seguinte, peço para sair mais cedo no trabalho, digo que tenho compromisso sério e prometo compensar a hora chegando mais cedo para a edição quando acabarem as filmagens. Tomo banho no camarim, coloco minha roupa mais bonita e um sapato de couro semi-novo que o antigo inquilino esqueceu quando deixou o conjugado. As intenções de Manuela me pareceram claras na nossa última conversa e a noite promete ser proveitosa. Passo o perfume que peguei emprestado com o ator principal. Não podia chegar lá cheirando a colônia Sendas. Tomo um taxi para escapar do suor incrustado na pele e nas roupas dos velhos trabalhadores da lotação. Chego adiantado onde marcamos e resolvo esperar do lado de fora, um restaurante chamado Canto do Boi. Vejo que muitas pessoas moram nas redondezas. Suas casas se revezam com comércios, geralmente bares. Não conhecia aquele lugar, Rua José Pereira. Me senti incompatível, posto que não era um canto bem iluminado e os transeuntes tampouco andavam de forma muito apresentável. Já estava ansioso pelo encontro e, Manuela, atrasada há dez minutos. Achei que não fosse aparecer, ponderei por ir de volta para casa e para minha rotina. Foi quando meus olhos esbarraram em seu rosto, mais bonito que nas fotos, espiando o relógio no pulso e a se aproximar indecisa se era eu ou não. Sorri confirmando minha identidade, no que fui retribuído vendo a cova no sorriso a qual tanto reparei em fotografias. Ela era morena, cabelo curto, um metro e setenta mais ou menos. Chegando perto, me deu um abraço sincero e caloroso, propôs que pegássemos logo uma mesa. Me senti satisfeito.
Ela Quis se sentar nos fundos, num canto reservado. Aceitei. Passava sua mão na minha e dizia estar contente. Conversamos sobre nada e de repente sua língua estava dentro de minha boca, nossos pratos sequer haviam chegado. Entrei no clima, e estávamos bebendo um vinho barato, que era o único que era servido. A comida chegou, estava à altura da quentinha dos peões carregadores lá do serviço, e o papo já fluía de forma que eu podia me abrir sem remorso. Contei mais dos meus pais bem sucedidos e da carreira que resolvi tomar, de minha irmã mais velha que se casou e de como eu gostava de trabalhar no estúdio.
Sem terminar o frango, ela levanta e diz que vai no banheiro, no que me dou conta novamente do mundo ao nosso redor. O restaurante está vazio e o cara do outro lado do balcão me espia de esguelha enquanto lava a louça com cara de quem cheirou e não gostou. O lugar já está fechado e concluo que somos os últimos clientes. Começo a pensar que poderei propor algo mais a ela após pagar a conta. Manuela se demora longos 5 minutos e, mal a vejo de volta, recebo uma porrada na cabeça. Caio no chão de bruços e não custo a sentir sangue escorrendo com pressa atrás da minha orelha. Lá de baixo posso ver. São três homens armados junto dela. Vestindo chinelos, bermudas em farrapos e camisetas furadas. Uma toda preta, outra com um escudo de time do lado esquerdo do peito, e uma terceira com a cara de um deputado estampada. Tento alcançar a porta e já começo a enxergar embaçado quando vejo a cabeça do deputado me carregando para dentro de um carro. Manuela não havia marcado encontro apenas comigo, mas também com outros três rapazes, e na mesma hora e lugar.
Quando recupero a lucidez, me vejo numa casa habitada apenas por mim e outros dois homens que não sei dizer se são os mesmos do dia anterior, posto que trajam outras vestimentas. Tento me espreguiçar, mas minhas mãos estão amarradas aos meus pés de forma grotesca, não sobrando nenhum espaço entre esses membros. A posição que sou forçado a fazer me projeta para frente, me colocando de cara com o chão, sem poder sair dali, como uma tartaruga de ponta cabeça. Tenho a boca lacrada também, então apenas posso ouvir. Estão tentando localizar meus pais, imagino que por ter dito à Manuela que tinham dinheiro. Se não conseguirem, disseram que a minha irmã vai servir. Vejo o sol nascer duas vezes na mesma posição, sem água e nem comida. Um homem magro com cicatriz no rosto aparece, me senta numa cadeira e me interroga enquanto um outro está armado, pronto para alojar uma bala dentro dos meus pensamentos. O magro se desespera por não conseguir o contato com nenhum conhecido meu. Tortura-me sem pudor e estou dopado demais para conseguir informar onde trabalho exatamente, coisa que não cheguei a dizer à Manuela, não sei pelo quê.
Ouço que não longe dali outros sequestros acontecem pela voz de criminosos confabulando entre si e fazendo perguntas aos seus reféns, sempre ameaçadoramente e falando ao celular quase que o tempo inteiro. O homem da cicatriz comenta com o outro que está tudo decidido, solta minhas mãos dos meus pés e me guia até um carro. Já não tenho forças para tentar uma fuga aos pulos e me sinto muito cansado. Minhas pálpebras sozinhas pesam mais que meu corpo inteiro, mas chego a ver as outras habitações e muito mato em nosso entorno. No banco de trás, acompanhado de um homem branco e gordo que porta uma pistola, sou levado até um lugar cheio de árvores que fica poucos minutos longe da casa. Não tomam o cuidado de me vendarem os olhos e, no caminho, descubro uma placa que diz “Mirante José Amorim - 5 km”
No que o carro para, sou forçado a deixar o veículo com mãos me guiando pelo pescoço. Paramos poucos metros adiante do carro e, de súbito, sinto como se o magrelo da cicatriz me abraçasse, e logo em seguida recebo uma faca em meu abdômen, que se retira furiosa. “Não serviu pra nada. Pé rapado! Manuela precisa prestar mais atenção com seus pares.” Sinto o chão batendo na minha cabeça e o barulho de motor logo fica distante. Os homens foram embora e, mesmo que minha boca não estivesse lacrada, não conseguiria dizer uma palavra. Sinto algo pulando dentro do meu peito, em frequência perfeita. Vejo muito sangue descer de minhas entranhas, e a batida que vem de mim vai ficando sem vontade de ser. Estou mais cansado, vejo alguém se aproximar. É Manuela, mas não sei se ela está ali, seu olhar parece dizer que lamenta que o encontro que marcamos tenha acabado dessa maneira, finalmente meu peito passa a tocar batida nenhuma e aceito estar morrendo quando um filme finalmente começa a passar toda a minha vida diante de dois olhos indecisos.
Trate de contar sobre Manuela e venha, por favor, buscar esse corpo já sem ânimo e vida nenhuma...
Volto e parece que estive sempre sonhando. O papel à minha frente conta a história de um homem que foi seqüestrado e morreu por um encontro às cegas, seu espírito quis contato comigo e deixou um recado em psicografia direta. Apesar de ter acabado de acordar, me sinto esgotado pelo último encontro e preciso voltar a dormir.
Matheus Marins Alvares
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